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  • Foto do escritorOlga Curado

As múltiplas vocações das panelas

Atualizado: 20 de mai. de 2020



A Morte !

Ninguém escapa,

nem o rei, nem a rainha, nem o bispo, nem o papa...

Mas eu sim, hei de escapar.

Compro uma panela, entro dentro dela e tampo bem tampadinha.

E quando a morte aqui chegar , eu lhe direi: “ - Aqui não há ninguém.

E viverei muito bem!


O poeminha travesso que recitei inúmeras vezes na minha infância esconde uma crença que transcende todas as idades. De que podemos enganar o destino. Ou melhor que a morte é para alguns, não é para todos, embora tenhamos um inexorável encontro com a Senhora.


Olhar para essa inevitabilidade é um exercício ao qual nos furtamos com prazer . Nesses tempos ansiosos a fantasia das panelas herméticas não serve de consolo, diante dos números colocados nas planilhas dos noticiários, atualizadas hora a hora, registrando enterros por todo o país.


Mas insistimos na quimera.


Há muitos de nós que negam as dúvidas e as reticencias das ciências, que correm para reafirmar a potência humana em descobrir meios de controlar os desajustes que provoca. Há súplicas e esperanças no milagre imediato, nas buscas pela vacina, o tratamento apontando para a porta de saída do corredor da morte onde estão reunidos os milhares de condenados pelo vírus da pandemia, sem crimes tipificados.


E, no desespero da luta pela vida a panela muda de status. Deixa de ser o escudo que negaceia a morte tornando-nos invisíveis para nos fazer visíveis , quando ressoam como sinos bradando contra iniquidades diante das quais não é possível calar. Repercute os gritos dos inconformados que soam batidas impertinentes num protesto que não quer ser um triste réquiem.


De longe - aqui e acolá - é possível escutar o brado das panelas, sem tampa. Friccionadas pela perplexa descoberta de que é necessário ficar visível agora , para que a morte prematura se vá.


Janelas iluminadas e silhuetas destemidas desafiam o silencio e a escuridão. Afugentam a covardia e a acomodação como se o pouco ou quase nada de um protesto barulhento tenha uma serventia. E tem.


Não há que se expulsar o demônio. Ele estará sempre entre nós. É uma exigência que assim seja. Para que se comparem vício e virtude. Porem, pelo ruído da vigilância serão expostas as falsas promessas de luxúria eterna oferecidas àquelas almas plásticas ao privilégio. É possível que alguns se retraiam e se lembrem envergonhados de um rascunhado propósito de servir. Poucos, muito poucos, se alguns, podem despertar.


Sim, da morte ninguém escapa. Mas, não há que ser abreviada a vida pela crença infantil de que o que não tem pus e não faz sangrar às vistas, que não incha e não deforma, não tem a força e o veneno da extinção, como o gás que vaza silenciosa e imperceptivelmente fazendo dormir quem o aprisiona junto a si.


Tem o dom de encantar palavras de otimismo e generosidade de tantos que acreditam na capacidade delas em infiltrar as mentes também pelos gestos solidários, ações que expressam a natureza divina de cada um. Há muitos desses seres espalhados e espalhando enquanto se movem, vida. Mas há a morte também se esparramando.



Sim, da morte ninguém escapa. Nem o rei... Mas tem as panelas .


Estou entre aqueles crentes que confiam nas panelas. Na capacidade delas de nos despertar desse pesadelo.



As panelas tem vocação mágica também. São os recipientes adequados para que sejam aprontadas fórmulas de encantamentos das feiticeiras que transformam príncipes em sapos ( é fato que não se tem noticia de que mudaram sapos em príncipes. Para isso são necessários outros sortilégios). Todavia, é recurso do qual não podemos nos esquecer. Delas emergem alimentos , se bem feitos e consumidos com propriedade, nos sustentam.



E as panelas e são sim um refúgio possível , inalcançável pela morte. Porque a Senhora chega antes como quase morte, avisa e ameaça. A quase morte - a inexorável trajetória do incansável vírus que nos encolhe - nos faz visíveis se a expulsamos pela inconveniência do momento. Isso acontece quando as panelas são destampadas e se tornam o instrumento solo da sinfonia dos que não se recolhem na insignificância da pobreza, da velhice, da doença. E quando se juntam a essa orquestra de párias aqueles que se beneficiam deles, o som ocupa todos os espaços da consciência.



As panelas tem a vocação da música - que não se quer réquiem - quando há o que cozinhar. São elas despertadores do sono da omissão.

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